90 anos de Ruth Cardoso: uma viagem no tempo

Ruth Cardoso faria 90 anos em 19 de setembro próximo. Se ela pudesse analisar as relações entre governo e sociedade civil no Brasil e no mundo de 2020, provavelmente, nos diria que avançamos para o passado. Os ganhos vividos no debate e nas políticas sociais na segunda metade dos anos 1990, especialmente com o Comunidade Solidária, foram seguidos por grandes saltos… para trás.

Esse foi um pouco o tom do evento realizado em parceria entre a Fundação FHC, o Centro Ruth Cardoso e o Insper. Ao celebrar a data, homenagear a antropóloga, ativista social e primeira-dama, os convidados destacaram como as relações entre sociedade civil e governo retrocederam em relação ao que eram 25 anos atrás.  As ideias e práticas de Dona Ruth ficaram desatualizados para nós por estarem perdidos no futuro.

Ricardo Paes de Barros chamou a atenção para três grandes mudanças nas últimas décadas relacionadas ao legado de Dona Ruth: o aumento do gasto em política pública que chega a 25% do PIB sem, no entanto, gerar indicadores sociais compatíveis ao volume de recursos; a participação do setor privado no debate dos temas públicos inclusive com aporte significativo de dinheiro; e, mais importante na perspectiva relações governamentais e sociedade civil, a abertura de espaços para participação política da sociedade civil.

As organizações da sociedade civil, OSCs, são críticas para qualificar a elaboração das políticas, viabilizar a aplicação de recursos, inovar, documentar e disseminar as melhores práticas, dar escalabilidade para programas e políticas. No entanto, as OSCs ainda enfrentam desafios de manutenção dos espaços e mecanismo públicos de participação – notadamente os conselhos, conferências e afins – tem de confrontar-se com concepções de que políticas sociais devem ser estatais ou de que atuam em substituição ao governo, sofrem para manter independência quando o financiamento das ações é, principalmente, governamental.

Augusto de Franco destacou que ideias e práticas que buscavam estimular um novo padrão de relacionamento entre estado e sociedade ficaram no passado. Mais ou menos nestas palavras, ele sentenciou que estamos perdidos por que o mundo regrediu e ficamos lá na frente, largados no futuro enquanto o mundo voltou. De suas considerações, destaco o impacto do contexto global e nacional no ambiente em que as relações com o governo acontecem, o retorno a contradições que se acreditavam superadas: entre dever do Estado e responsabilidade do cidadão; políticas públicas e ação comunitária; participação da sociedade civil e protagonismo nas estratégias de desenvolvimento. Viemos da queda do muro de Berlim para as Torres Gêmeas e Guerra ao Terror; do ciclo de Conferências Sociais da ONU (ilustro o argumento do Augusto) para o Unilateralismo. Passamos das rodadas de interlocução política com os principais atores – sem distinção ideológica ou político-partidária – para o desmonte dos espaços e para a transformação dos “outros” em inimigos internos.

Olhando para trás, entendemos que estivemos mais à frente do que estamos hoje. Estamos de volta ao ponto em que é preciso amadurecer as relações entre a sociedade civil e o estado; aprofundar a concepção de que desenvolvimento não é crescimento econômico e de que desenvolvimento é para todos – não só políticas sociais para os pobres; reafirmar que é a qualidade do tecido social que sustenta a democracia; ocupar os espaços de participação política de forma qualificada. Como diria Eduardo Bueno, meu relato está cheio de generalizações e simplificações, mas o quadro geral é esse mesmo. O vídeo das falas na íntegra está disponível na internet. Entendo, particularmente, que a atividade de fazer relações governamentais nos coloca no centro desta viagem no tempo.

Autor: Rodrigo Bonfim